sábado, 13 de outubro de 2007

WALTER BENJAMIN - Sobre a Situação da Arte Cinematográfica Russa

É mais cómodo ver as melhores realizações da indústria cinematográfi­ca russa em Berlim do que em Moscovo. O que chega a Berlim é já uma selecção, que em Moscovo nós próprios teremos de fazer. E não é fácil pedir conselho a alguém, porque a relação dos Russos com o seu próprio cinema é muito pouco crítica (sabe-se que o grande êxito de O Couraçado Potemkin se decidiu na Alemanha). A razão desta falta de segurança no juízo crítico está na falta de termos de comparação com o que acontece no resto da Europa. Raramente se vêem na Rússia bons filmes estrangeiros. A política de aquisições do governo parte do princípio de que o mercado russo é tão importante para as firmas internacionais concorrentes que elas têm de o for­necer com amostras propagandísticas a preços reduzidos. Deste modo ficam, naturalmente, de fora os bons filmes, que custam caro. Para os artistas russos a desinformação que daqui resulta tem as suas vantagens junto do público. Iljinski trabalha com uma cópia muito pouco rigorosa de Chaplin e é visto como cómico, mas só porque Chaplin é um desconhecido aqui.

A situação interna russa esmaga o filme médio de uma forma mais séria e generalizada. Não é fácil conseguir cenários adequados, porque a escolha dos assuntos está sujeita a um controle apertado. A literatura desfruta na Rússia de maior liberdade em relação à censura. Já o teatro é observado com muito mais atenção, e o cinema ainda com maior rigor. Esta escala é pro­porcional à escala das respectivas massas de espectadores. Com o regime actual, as melhores produções são as que tratam episódios da revolução rus­sa; os filmes que remetem para épocas mais recuadas constituem a mediania sem interesse; e as comédias não têm qualquer significado, à luz de padrões europeus. O cerne de todas as dificuldades actuais dos produtores de cinema russo está no facto de o espaço público os acompanhar cada vez menos naquela que é a sua área por excelência, o filme político sobre o período da guerra civil. O período político-naturalista do cinema russo alcançou o seu apogeu há cerca de ano e meio com uma avalancha de dramas de morte e terror. Tais temas perderam, entretanto, a sua força de atracção. Por toda a parte só se ouve falar da necessidade de apaziguamento interno. O cine­ma, a rádio, o teatro, abandonam toda a espécie de propaganda.

A tentativa de abordar assuntos mais pacíficos levou a que se lançasse mão de um processo tecnicamente curioso. Como raramente é permitida, por razões políticas e artísticas, a filmagem dos grandes romances russos, retiraram-se deles determinadas figuras conhecidas, «montando-as» numa acção actual e livremente concebida. Vão-se buscar personagens de Puschkin, Gogol, Gontcharov, Tolstoi, muitas vezes mantendo-lhes os nomes. Este novo cinema russo busca de preferência a Rússia oriental, distante. «Para nós» - é o que se quer dizer com isso - ­volucionária de um povo colonizador. À Rússia não interessa o conceito romântico de um «Oriente distante». Está ligada a ele pela proximidade e pela economia. Ao mesmo tempo, esta atitude quer dizer: nós não estamos dependentes de países e paisagens estrangeiras, sendo a Rússia, como é, o sexto continente! Temos na nossa própria terra tudo o que existe na Terra.

Acaba, assim, de sair mais uma epopeia cinematográfica da nova Rússia, com o título O Sexto Continente. Mas o realizador Wertoff não conseguiu levar a cabo a tarefa principal de mostrar, em imagens repre­sentativas, toda a gigantesca transformação operada na Rússia. A coloni­zação cinematográfica da Rússia falhou, mas resultou brilhantemente a sua demarcação em relação à Europa. É com ela que se inicia este filme. Em fracções de segundos, seguem-se imagens de lugares de trabalho (pis­tões em funcionamento, carregadores na colheita, transportes) e de lugares de lazer do capital (bares, dancings, clubes). Retiraram-se alguns segmentos mínimos (por vezes apenas pormenores de uma mão que acaricia ou de pés a dançar, um fragmento de penteado ou de um pescoço com um colar) de filmes de temática social dos últimos anos, montando-os de tal modo que eles são inseridos continuamente entre imagens de proletários que trabalham duramente. Infelizmente, o filme deixa rapidamente cair este esque­ma, para se, voltar para uma descrição dos povos e das regiões da Rússia cuja relação com a sua base de produção económica é sugerida de forma muito nebulosa. Percebe-se que há ainda um tactear inseguro, e um único aspecto basta para o mostrar: a acompanhar imagens de guindastes, alavan­cas e transmissões, uma orquestra toca motivos do Tànnhiiuser e do Lohen­grin. Apesar de tudo, as imagens caracterizam bem a intenção de fazer filmes sem qualquer aparato decorativo ou teatral, baseando-os simples­mente na própria vida. Trabalha-se com esse aparato mascarado. Enquanto os primitivos assumem determinadas poses diante de um boneco, são real­mente filmados só algum tempo depois, quando julgam que tudo já termi­nou. O novo princípio do «Libertemo-nos da máscara!» em nenhum outro lugar foi levado tão longe como no cinema russo. Por isso, em nenhum outro lugar a importância da estrela de cinema é tão diminuta. Não se pro­curam actores que sirvam para sempre, mas os tipos exigidos caso a caso. Vai-se mesmo mais longe. Eisenstein, o realizador do Potemkin, prepara um filme sobre a vida dos camponeses no qual não haverá um único actor.

Os camponeses não são apenas um dos mais interessantes temas do fu­me cultural russo, mas também o seu público mais importante. Procura-se levar até eles, através do cinema, conhecimentos históricos, políticos, técni­cos e de higiene. Mas todos estão ainda muito perplexos perante as dificul­dades que esse processo encerra. O modo de ver as coisas dos camponeses é radicalmente diferente do das massas urbanas. Chegou-se, por exemplo, à conclusão de que um público camponês não é capaz de apreender duas séries simultâneas de acontecimentos, e não há filme que não as contenha às centenas. Só consegue seguir uma única sequência de imagens, que tem de se desenrolar cronologicamente diante dele, como as imagens dos cantores de romances de cordel nas feiras. Depois de se ter constatado repetidas vezes como certas passagens que se pretendiam sérias tinham sobre esse público um efeito irresistivelmente cómico, e vice-versa, que passagens cómicas os emocionavam seriamente, começou a produzir-se filmes especialmente para os cinemas ambulantes que por vezes chegavam aos mais remotos lugares da Rússia, a povos que nunca tinham visto cidades nem modernos meios de transporte. O projecto de levar até essas comunidades o cinema e a rádio é uma das mais grandiosas experiências sobre a psicologia dos povos que agora está em curso neste imenso laboratório que é a Rússia. É claro que nesses cinemas de província são os filmes de esclarecimento político que ocupam o primeiro lugar. Em primeiro plano encontram-se filmes sobre práticas como o combate às pragas de gafanhotos, o uso de tractores, a cura do alcoolismo. Mas muita coisa apresentada no programa desses cinemas ambulantes é incompreensível para as grandes massas, e serve de material de formação para os mais avançados: membros dos sovietes de aldeia, cor­respondentes camponeses, etc. Pensa-se actualmente, neste contexto, na fundação de um «Instituto para o Estudo do Espectador», para analisar, de um ponto de vista experimental e teórico as reacções do público.

Uma das grandes palavras de ordem recentes, com efeitos sobre o cine­ma, foi: «Olhemos para as aldeias!» Aqui, como na literatura, a política for­nece os mais fortes impulsos, com as directivas que o Comité Central do partido dá mensalmente à imprensa, esta aos círculos, os círculos aos teatros e cinemas, como num sistema de estafetas. Mas também pode acontecer que tais palavras de ordem causem sérias dificuldades. Um exemplo paradoxal é o da palavra de ordem «Industrialização». Dado o grande interesse que aqui se verifica por todos os aspectos da técnica, pensar-se-ia que o filme burlesco seria muito apreciado. Na verdade, essa paixão exclui por enquanto, que tudo o que tenha a ver com a técnica possa ter efeitos cómicos, e as comé­dias excêntricas importadas da América foram um fracasso rotundo. O novo Russo é incapaz de compreender um ponto de vista irónico e céptico em relação à técnica. Outro domínio que o cinema russo desconhece são os assuntos e problemas da vida burguesa, ou seja, acima de tudo: não se supor­tam os dramas amorosos no cinema. A ênfase dramática, ou trágica, posta nas coisas do amor é vista com desprezo em toda vida da Rússia de hoje. Os suicí­dios provocados por amores traídos ou infelizes são tratados pela opinião pública comunista como se dos mais grosseiros excessos se tratasse.

Todos os problemas que se encontram actualmente no centro das dis­cussões são para o cinema - tal como para a literatura - problemas de con­teúdos. A nova era da paz civil trouxe um período difícil. O cinema russo só poderá assentar numa base segura quando a situação da sociedade bolchevis­ta (e não apenas da esfera política) for suficientemente estável para poder aguentar uma nova «comédia social», novos papéis e novas situações-tipo.

1 comentário:

areyede disse...

o texto é muito interessante como divulgador da produção cinematografica russa. estou tendo os primeiros contatos com o cinema russo revolucionario, de Vertov e Eisenstein, sobre os quais confesso estar lendo muito como quem quer pensar sobre as possibilidades culturais latentes no cinema, a partir das reflexoes do W. Benjamin. Essas experiencias contadas sao melhores que estudos sociologicos sobre a "educação" no pais da revolução de outubro. rs.